Santos e demônios III: São João Maria Vianney
(Mons. Francis Trouchu)
Que há inferno e anjos decaídos condenados a ele é dogma da nossa fé católica. Conforme ela, o demônio é um ser pessoal e existente e não uma ficção da fantasia.
No mundo, é verdade, a sua ação permanece oculta, porém, às vezes, com permissão de Deus, se manifesta exteriormente. É que sem dúvida vê ameaçada sua influência nesta ou naquela parte da terra, e como não pode atacar diretamente a Deus, o invisível malfeitor se esforça em esterilizar os trabalhos dos seus obreiros.
Por espaço de 35 anos – de 1824 a 1858 – o Cura d’Ars foi alvo das perseguições exteriores do maligno. Se satanás tivesse conseguido roubar-lhe o sono e o repouso, tirar-lhe o gosto da oração, das austeridades e dos trabalhos apostólicos e o obrigasse a deixar o ministério das almas!... Mas o inimigo da salvação foi descoberto e vencido. “As lutas com o demônio, diz Catarina Lassagne, tornaram o Pe. Vianney caritativo e desinteressado”. O péssimo astuto não contava com esse resultado.
As perseguições infernais começaram no tempo em que o Santo Cura meditava no plano da Providência [isto é, o orfanato/educandário de Ars], para a qual acabava de adquirir uma casa, quer dizer, durante o inverno de 1824 a 1825.
Foram a continuação de violentas tentações interiores. Durante o curso de uma enfermidade bastante grave, devida talvez ao que ele chamava “loucuras da juventude” [isto é, suas heróicas penitências], o Pe. Vianney, tentado por pensamentos de desesperação, cria-se próximo à morte. Parecia-lhe ouvir repetidamente, dentro de si mesmo, uma voz que lhe dizia: “Agora cairás no inferno”. Mas o Santo recuperava a paz da alma avivando sua fé em Deus. Para turbar-lhe a paz exterior, começou o demônio com inquietações insignificantes. Cada noite, o pobre Cura d’Ars ouvia rasgarem-se as cortinas do leito. Pensou que se tratasse de vulgares roedores. Deixou um pau na cabeceira, mas tudo em vão. Quanto mais sacudia as cortinas para pegar os ratos tanto maior era o ruído dos rasgões, e no dia seguinte, quando esperava ver as cortinas feitas em pedaços, encontrava-as intactas. Essas manobras duraram algum tempo.
O Cura d’Ars não pensou, a princípio, tratar-se do espírito das trevas. “Não era nada crédulo, e dificilmente dava fé aos fatos extraordinários”, tanto que, mais tarde, quando se lhe ofereciam casos de possessão diabólica, conduzia-se sempre com a maior prudência. “Perguntei-lhe um dia, diz o Pe. Dufour, missionário de Belley, que pensava de uma pessoa que se enfurecia em presença de um sacerdote ou de um crucifixo. Respondeu-me: ‘Tem um pouco de nervos, um pouco de loucura e um pouco do grappin’. – Grappin era o nome com que ele de ordinário designava o demônio. – Quanto a ele [mesmo], conservando perfeito domínio de si mesmo em meio de um trabalho inaudito, não podia ser tido por alucinado. Muito sério e inimigo da mentira para inventar comédias, jamais teria falado em obsessões do demônio se não fossem reais. Tal era, de outro lado, a convicção de quantos dele se aproximavam.
Ora, no silêncio duma noite ouviram-se pancadas e gritos no pátio da casa paroquial. Seriam acaso ladrões que cobiçavam os preciosos presentes do visconde de Ars, guardados nun cofre no sótão? O Pe. Vianney desceu às pressas e não viu nada. Contudo, nas noites seguintes, receou ficar só.
– “Depois de muitos dias, contou André Verchere, carvoeiro da vila, jovem de 28 anos, robusto e galhardo, que o Pe. Vianney ouvia em sua casa um ruído extraordinário, uma tarde veio ao meu encontro e me disse: ‘Não sei se são ladrões... Queres dormir na casa paroquial?’
– ‘Com muito gosto, sr. Cura. Vou carregar o meu fuzil’. Chegada a noite, dirigi-me à casa canônica. Conversei com o sr. Cura, junto ao fogão, até pela volta das dez. Então me disse ele: ‘Vamos dormir’. Cedeu-me seu quarto e ele ocupou o contíguo. Eu não podia dormir. A uma hora ouvi sacudir com violência o ferrolho e a tranca da porta que dava para o pátio. Simultaneamente, contra a mesma porta ressoavam pancadas de maça, enquanto a casa se enchia de um ruído atordoador como de várias carroças. Tomei o fuzil e me precipitei para a janela, que abri com violência. Olhei e não vi nada. A casa estremeceu por um quarto de hora. Minhas pernas fizeram o mesmo, e disso me ressenti por espaço de 8 dias. Quando o estrépito começou, o sr. Cura acendeu uma lâmpada e veio ter comigo.
– Ouviste alguma coisa? Perguntou-me.
– Sim. Pois não vê Vossa Reverendíssima que me levantei e estou com o fuzil?
A casa estremecia como se a terra tremesse.
– Tens medo? Perguntou-me ainda o sr. Cura.
– Não; não tenho medo, porém sinto que me faltam as pernas. A casa vai desabar.
– Que pensas ser isso?
– Creio ser o diabo [respondeu o guarda].
Quando cessou o barulho, voltamos para a cama. O sr. Cura na noite seguinte pediu-me ficasse com ele novamente. ‘Sr. Cura, respondi-lhe, já levei susto que chega’”.
Santos e demônios I: Santa Gema Galgani
(Padre Germano de Santo Estanislau, CP - tradução do Padre Matos Soares)
"Para purificar os Seus escolhidos e fazer deles vítimas de expiação, Deus serve-Se muitas vezes de satanás que, com o seu ódio ao homem, é em Suas mãos o instrumento mais ativo. A Santa Escritura e sobretudo os registros da hagiografia oferecem-nos exemplos numerosos desta conduta da Providência Divina.
Quando o Senhor quis elevar São Paulo da Cruz a um grau mais eminente de santidade, disse-Lhe no íntimo da sua alma: 'Fazer-te-ei calcar aos pés pelos demônios'. Gema ouviu também um dia palavras semelhantes: 'Prepara-te, minha filha; por minha ordem o demônio vai declarar-te guerra e dar, por esta forma, o último retoque à obra que realizei em ti'.
Podemos dizer que esta gurra foi geral, isto é, dirigida contra cada uma das virtudes e práticas por meio das quais a jovem virgem se esforçava em caminhar para Deus. Todas desagradavam ao anjo do mal, que as atacou com ódio feroz. Dir-se-ia que, no exercício do seu tenebroso império, não tinha outra preocupação senão perseguir esta pobre menina e procurar meios de a assaltar com tentações.
A oração é o alimento vital da santidade, o supremo caminho que conduz ao Soberano Bem. Desde há muito que Gema a amava e praticava com todo o ardor da sua alma e devia-lhe bens inapreciáveis. O que não fez satanás por afastar a donzela da oração! Nada podendo conseguir com as suas inspirações perversas, provocava-lhe violentas dores de cabeça que teriam levado uma alma menos enérgica antes à indolência e ao repouso que à oração; experimentava mil outros meios para a desviar deste exercício divino. 'Oh!' dizia-me ela, 'que tormento para mim o não poder orar! Que fadiga eu sofro! E que esforços faz esse velhaco (assim chamava ao demônio) para me tornar a oração impossível! Ontem à noite queria matar-me, e te-lo-ia feito se não fosse a rápida intervenção de Jesus. Eu estava desfalecida, tinha bem gravado na minha alma o Nome de Jesus, mas não me era possível proferí-lo com a língua”
Algumas vezes o infernal inimigo tentava triunfar de um só ímpeto por meio de sugestões ímpias. ‘Que fazes tu, lhe dizia, és louca de orar a um malfeitor? Vê como ele te atormenta e te conserva consigo sobre a cruz. Porventura podes amar quem não conheces e quem trata tão duramente os seus melhores amigos?’ Estas blasfêmias não eram mais que poeira lançada ao vento, mas afligiam profundamente a alma terna e amante, obrigada a ouvir ultrajar assim o seu adorável Jesus.
No meio de tantos sofrimentos, a pobre menina procurava algum confôrto no seu pai espiritual, apresentava-lhe as suas dificuldades, implorava conselho e direção. Este humilde e filial recurso não agradava ao espírito das trevas, que via assim diminuir as suas já tão pequenas probabilidades de êxito. Usou de mil artifícios para isolar na luta a Serva de Deus, afastando-a do diretor espiritual. Pintou-lho com as mais desprezíveis cores: como ignorante, um fanático, um iludido. ‘Nos últimos dias, escrevia-me ela, o maldito fez-me ‘boas’ [peças]. Este monstro queria privar-me do meu guia e conselheiro para me perder; não tenho, porém, receio de que o consiga.’
Parece que esta confiança em Deus deveria desarmar satanás, mas não desarmou. Perante a inutilidade de suas pérfidas insinuações, recorreu à violência física. Logo que Gema tomava a pena para me escrever, tirava-lha das mãos e rasgava o papel; algumas vezes, agarrando-a pelos cabelos, arrancava-a de junto da mesa com tal raiva que lhe ficavam nas mãos brutais madeixas inteiras; e ao mesmo tempo uivava com voz furiosa: ‘Guerra, guerra a teu pai espiritual, guerra enquanto ele estiver no mundo!’ Seja-me lícito dizer, aqui só entre nós, que nunca passou das palavras. ‘Acreditai-me, Padre, dizia Gema, ao ouvi-lo, vê-se que este velhaco odeia muito mais a vós do que a mim.’
O demônio levou a audácia até ao ponto de tomar as aparências do seu confessor ordinário. Um dia acabava a menina de entrar na igreja e preparava-se, esperando pelo sacerdote, para a recepção do sacramento da Penitência. Mas qual não foi o seu espanto ao vê-lo imediatamente no seu posto, sem que pudesse saber por onde é que tinha entrado! Sentiu uma grande perturbação interior, que era nela indício infalível da presença do espírito maligno. Entretanto aproximou-se e começou a confissão. A voz que ouvia era realmente a do confessor ordinário, mas as palavras eram escandalosamente indecentes e acompanhadas de atos desonestos. ‘Meu Deus, exclamou Gema, que é isto e onde estou eu?’ A pura menina, tremendo dos pés à cabeça, permaneceu por um instante estonteada, depois sossegou, levantou-se, saiu do confessionário e verificou então que o pretendido confessor tinha desaparecido, sem que nenhuma das pessoas presentes o visse ir.
Não havia dúvida: o demônio procurava com este artifício grosseiro surpreender a santa menina ou pelo menos tirar-lhe toda a confiança no ministro de Deus.
Tendo falhado este golpe, tentou outro. Apareceu sob a forma de um belo anjo resplandecente de luz e cheio de solicitude pela sua felicidade. Como com Eva no paraíso terrestre, empregou a mais sutil astúcia para conseguir enganá-la. ‘Olha para mim, dizia ele, posso tornar-te feliz; jura somente que me obedecerás.’ Gema, que desta vez não tinha sentido a perturbação reveladora da presença do demônio, ouvia tranquilamente. Mas, logo às primeiras propostas criminosas do espírito perverso, os olhos se lhe abriram e ela se pôs na defensiva. ‘Meu Deus, Maria Imaculada, exclamou a princípio, vinde em meu auxílio!’ Depois, avançando resolutamente para o anjo disfarçado, escarrou-lhe na cara. Desapareceu imediatamente sob a forma duma grande chama vermelha, deixando no assoalho do quarto um montão de cinza.
Algum tempo depois, novo assalto. ‘Ouvi, Padre: escrevia-me Gema, ontem entrava eu em casa, depois de ter me confessado. Aproveitando o momento de solidão, pus-me de joelhos para recitar a Coroa das Cinco Chagas. Ia a chegar à quarta Chaga quando vi diante de mim uma pessoa muito parecida com Jesus. Estava flagelado de há pouco e do seu coração aberto corria sangue em abundância. Disse-me: ‘É assim, minha filha, que me correspondes? Considera o estado em que me encontro. Vês como sofro por ti? E não podes continuar a consolar-me com essas penitências? E no entanto era bem pouca coisa; podias muito bem retomá-las. – Não, não respondi, quero obedecer e desobedeceria se vos atendesse. – Mas enfim, o confessor que tas proibiu foi esse... Ora, tu de nenhum modo estás obrigada a obedecer-lhe. – E acrescentou muitas mais coisas. Nestes perniciosos conselhos reconheci satanás, e estava para tomar a disciplina, como das outras vezes em iguais circunstâncias, quando me senti diferentemente inspirada. Levantei-me, lancei-lhe água benta e desapareceu. Recuperei então a paz, não sem ter recebido alguns golpes com que a besta vil me gratifica de tempos a tempos.’
Não obtendo outra coisa, o espírito do mal procurava assim levar Gema, contra a proibição do diretor espiritual, a penitências prejudiciais à saúde.
Para protegê-la contra as visões maléficas, ordenei-lhe que a cada aparição sobrenatural exclamasse: Viva Jesus! Nosso Senhor, sem eu o saber, tinha-lhe dado um conselho quase igual. Gema devia dizer: Benditos sejam Jesus e Maria. A dócil menina, para obedecer a ambos, juntava as duas exclamações. Os bons espíritos repetiam-nas sempre, mas os maus ou não respondiam ou se limitavam às primeiras palavras: Viva, benditos. Por este sinal eram reconhecidos, e Gema escarnecia deles.
Com a esperança de lhe inspirar o orgulho, o demônio mostrava-lhe algumas vezes em sonhos, ou mesmo estando acordada, uma procissão de pessoas vestidas de branco que se aproximavam piedosamente do seu leito para a venerar. Descobria-lhe também que as cartas para seu pai espiritual eram religiosamente conservadas com o fim de servirem um dia à sua glória, etc., etc. Vãs tentações, a Serva de Deus era suficientemente humilde para não se deixar levar como Eva pela sedução da vaidade.
Supondo abalar talvez a sua grande confiança em Deus, o maldito aproveitava as ocasiões tão freqüentes de abandono e de cruel aridez espiritual para aumentar em sua alma o horroroso temor da condenação. ‘Não vês, lhe dizia, que Jesus não te escuta, que já te não quer conhecer? Para que afadigar-te em correr após ele? Só te resta resignar-te com a tua desgraçada sorte.’ Para os santos foi sempre esta tentação a mais angustiosa. Gema experimentava-lhe toda a violência; mas habituada a recorrer a seu Deus, apesar de tudo e em todas as circunstâncias, com a mais viva fé, como uma criança recorre a seu pai, depressa recuperava a serenidade. Por isso podia dizer-me: ‘Este celerado cansa-se; quereria ... Mas Jesus com suas palavras inspirou-me tal tranqüilidade que todos os esforços diabólicos não poderiam tirar-me a confiança por um só momento.’
O anjo da soberba, furioso de ver que toda a sua astúcia se malograva aos pés duma humilde donzela, em ultimo recurso tirou definitivamente a máscara, passando a atos de violência. Aparecia-lhe sob as formas horríveis dum monstro ameaçador, dum homem feroz, dum cão raivoso. Depois de ter assim procurado aterrorizá-la, precipitava-se sobre ela, batia-lhe, rasgava-lhe a pele, atirava-a dum lado para outro no quarto como se fôra uma rodilha; arrastava-a pelos cabelos e martirizava de todas as maneiras possíveis os seus inocentes membros. E não julguemos que tudo isso se limitava a impressões puramente imaginárias, porque os efeitos sobre o corpo da vítima persistiam por muito tempo: cabelos arrancados, carnes lívidas, ossos quase esmagados, dores atrozes. Algumas vezes ouvia-se o barulho das pancadas, via-se o leito mudar de lugar e elevar-se da terra para cair bruscamente. Estes vexames duravam sem interrupção horas inteiras e algumas vezes toda noite.
Deixemos gema falar a este respeito. A simplicidade do seu estilo e a ingênua sinceridade da sua alma dispensam-nos de fazer comentários. ‘Hoje, que me julgava livre desta besta vil, fui muito molestada por ela. Ia para me deitar, esperando poder dormir; não sucedeu, porém, assim. A princípio recebi uma pancada das mais terríveis, de que pensei morrer. O malvado tinha a forma dum grande cão negro, e punha-me as patas sobre os ombros. Tratou-me de tal modo que em um dado momento supus ter os ossos todos quebrados. Pouco depois, como eu tomasse água benta, torceu-me o braço com extrema violência e caí em dor. Os ossos estavam completamente deslocados, Jesus, porém, veio repô-los no seu lugar, tocando-os, e tudo ficou remediado.’ Em outra carta: “Também ontem o demônio me afligiu. Minha tia mandou-me que fosse encher os jarros do quarto. Ao passar com os jarros na mão, diante da imagem do Coração de Jesus, dirigi-lhe com amor uma prece fervorosa; imediatamente senti darem-me sobre os ombros uma bastonada tão forte que cai por terra, sem nada quebrar. Ainda hoje me sinto muito mal e menor trabalho me causa dor.”
A santa menina escrevia-me ainda: “Acabo de passar, como de costume, uma noite má. O demônio apresentou-se diante de mim sob a figura de um imenso gigante e bateu-me durante toda a noite, dizendo: para ti já não há esperança de salvação, estás em meu poder. Respondi que nada temia porque Deus é misericordioso. Então, espumando de raiva, deu-me uma grande pancada na cabeça e desapareceu gritando: maldita sejas. Fui para o quarto repousar um pouco, mas tornei a encontrá-lo lá. Começou de novo a bater-me com uma corda toda aos nós. Batia-me por eu me opor a fazer o mal que sugeria. Não, lhe dizia eu; e ele redobrava as pancadas, batendo-me violentamente com a cabeça no chão. De repente tive a lembrança de implorar o auxílio do divino Pai de Jesus e exclamei: Pai Eterno, livrai-me pelo sangue preciosíssimo de Jesus. Imediatamente o velhaco deu-me uma pancada formidável, atirou-me abaixo da cama e fez-me bater a cabeça no chão com tanta violência que perdi os sentidos com a dor. Só muito tempo depois os recuperei. Demos graças a Jesus.”
Estas cenas repetiam-se muito frequentemente, e, em certas épocas todos os dias. A pobre padecente estava quase habituada a elas. Exceptuando as torturas corporais, podemos dizer que a vista do monstro infernal já não a atemorizava. Olhava-o com a mesma serenidade com que a pomba olha para um animal imundo. Gema algumas vezes entretinha-se a responder-lhe e a humilhá-lo, quando não estava proibida de o fazer; e, quando à invocação do Santíssimo Nome de Jesus, a hedionda besta se rolava por terra para fugir em seguida a toda pressa, a ingênua menina acompanhava-a com zombarias e francas gargalhadas. “Se vísseis, Padre, como ele fugia e tropeçava em sua fuga raivosa, ter-vos-ieis rido comigo.” Assistia eu uma ocasião à piedosa menina, gravemente doente e em perigo de vida. Sentado a um canto do quarto rezava tranquilamente o Breviário, quando um enorme gato muito preto e de aspecto terrificante me saltou impetuosamente para os pés. Deu uma volta pelo quarto, saltou para o leito da doente e colocou-se muito perto do seu rosto, fixando nela um olhar feroz. O sangue gelou-me nas veias; Gema, porém, permanecia muito serena. Então! Que há de novo? Lhe disse eu, ocultando o melhor possível a minha atrapalhação. – Não tenhais medo, Padre, é esse velhaco do demônio que quer molestar-me, mas não temais, a vós não fará mal nenhum. A tremer aproximei-me do leito, tomei água benta e aspergi-o. A visão desapareceu imediatamente, sem ter conseguido alterar por um só momento a paz profunda da doente.
A única coisa que aterrava verdadeiramente Gema era o receio de ceder às sugestões do inimigo e ofender a Deus. Embora nunca tivesse caído durante o passado, o perigo parecia-lhe iminente e conservava-a aterrorizada. Não esquecia nenhum meio de defesa: Cruz, relíquias dos Santos, escapulários, exorcismos, e, acima de tudo, recurso filial a Deus, a Maria Santíssima, ao Anjo da Guarda e ao diretor de sua alma. Escrevia-me: “Vinde depressa, Padre, ou ao menos daí fazei exorcismos, porque o demônio persegue-me por todos os modos; ajudai-me a salvar a alma, tenho medo de já estar nas mãos de satanás. Ah! Se soubésseis como sofro! Como ele estava contente esta noite! Agarrou-me pelos cabelos e puxava por eles dizendo: desobediência! desobediência! Quero concluir desta vez, vem, vem comigo! Queria levar-me para o inferno. Atormentou-me durante mais de quatro horas. Foi assim que se passou a noite. Tenho receio de o atender um dia ou outro e vir a desagradar a Jesus.”
Em algumas raríssimas ocasiões o Senhor permitiu ao demônio apoderar-se de todo o seu ser, ligar as potências da sua alma e perturbar-lhe a imaginação a tal ponto que se poderia julgar possessa. Causava dó vê-la neste estado miserável. Ela mesma tinha-lhe um tal horror que, só com lembrar-se dele, empalidecia e começava a tremer. “Ó Deus, dizia ela, estive no inferno sem Jesus, sem a divina Mãe, sem o Anjo! Se saí de lá sem pecado só a Vós o devo, ó Jesus. Apesar de tudo, estou contente, porque sofrendo assim e sofrendo sempre, faço a Vossa santíssima Vontade.” Se estes assaltos do demônio se tivessem repetido mais vastas vezes ou tivessem sido de mais longa duração, a pobre padecente, apesar de muito resignada, teria com certeza perdido a vida. A estas atribulações juntavam-se as dores de cruéis doenças, provocadas, como temos fortes razões para o crer, pelo próprio espírito infernal. E se refletirmos que Gema estava ao mesmo tempo miraculosamente associada a todos os tormentos sofridos pelo divino Redentor na Sua Paixão, teremos uma idéia da grandeza do martírio desta virgem heróica, que se tinha oferecido em holocausto ao Senhor.